sábado, março 18, 2006

O que dá andar dessarrumar estantes



Pois é, de vez em quando, com alguma regularidade, lá tem de ser, pois o que não gosto mesmo é ver os meus livros entranhados com resquícios de pó.
No meio de alguns muitos :), lá estava o Baudolino de Umberto Eco, um dos livros que mais me apaixonaram e um dos mais parcantes no meu percurso de leitora e de pessoa interessada em literatura.

Umberto Eco desafia o leitor a compreender o que parece indecifrável, desafia-o mesmo a quase deixar de ler, numa espécie de tensão literária, em que o próprio escritor quer conduzir o leitor do (in)decifrável em (in)decifrável, de época em época, fazendo-o pensar no que é no fim de contas a literatura. Neste sentido, este texto literário é concebido como uma espécie de manta de Penélope, cujos retalhos Penélope faz e desfaz num movimento constante. É no fundo o que o autor desta obra quer levar o leitor a pensar: a literatura não é mais do que uma manta de retalhos que vão sendo entretecidos, sendo também essa manta cada texto literário em que parte das suas referências nos remetem para a tradição literária.
Baudolino, a personagem principal, desempenha ele próprio a função de leitor, ao mesmo tempo ouvinte de toda uma tradição literária. Eco transporta-nos à época medieval, altura em que a literatura possuia apenas uma base oral.
Baudolino conhece os mundos da literatura e torna-se, portanto, leitor e re-leitor dessa tradição. Além de conhecedor, esta personagem é ainda contadora de histórias e escreve versos para um "falso" poeta. A um terceiro plano, Baudolino é também ele uma personagem história, pois o que a obra de Umberto Eco também nos conta não é mais do que também o seu enamoramento ficcional pela Senhora do Licórnio ou, como queiram, Dame à la Licorne, na tradição medieval francesa, tradição literária que remonta aos finais do século XV bem representada numa extraordinária tapeçaria medieval que pode ser vista no Museu de Clunny, em Paris.
Ora, no desenrolar da estória, cuja narração é assegurada por Baudolino, aparece-nos Nicetas, um dos ouvintes do contador dé estórias por excelência, um sábio mestre da ficção e ábil na construção de histórias ficcionadas, a ponto de reconhecer em Baudolino um grande mentiroso. Uma vez mais o leitor atento consegue dar-se conta da presença bem disfarçada do autor, um autor que, também através do discurso de duas personagens ligadas ao mundo da literatura, quer levar o leitor a compreender que a aparente verdade de um texto literário resulta apenas e sobretudo de estratégias narrativas.
Além de Nicetas, Diácono João é outra das personagens ouvintes de Baudolino. Diácono João vive fascinado com as estórias contadas, enquanto registos de vivências possíveis, de mundos que poderiam existir e que a literatura e qualquer arte tem o dom de construir. diácono João, ao contrário de Nicetas, não é mais do que o exemplo do protótipo de leitor que se deixa levar pelas "verdades" que emanam dos textos.
O livro de Umberto Eco apresenta-nos ainda um quarto plano de leitor: Nós que aqui e agora nos prendemos à leitura da obra de Eco, sentindo-nosfascnados pela leitura e por toda a tradição do contar de histórias que remonta à época medieval. Nós, leitores atentos e conhecedores dessa tradição literária, somos levados a identificar cada passo que nos remete para essa tradição num texto minado de referências. Nesta perspectiva, somos também ouvintes, leitores e estamos convocados a reler toda essa literatura que está para trás e, quem sabe, tornarmo-nos também transmissores e contadores de histórias.

Para os interessados, o Baudolino de Umberto Eco é publicado pela editora portuguesa Difel, com tradução de José Colaço Barreiros

3 comentários:

Arte em Movimento disse...

Umberto Eco - Em nome da Rosa
Umberto Eco - O Pêndulo de Foucault
Umberto Eco - E a Moçanaria!!
Umberto Eco - e os Mistérios da Cultura!!
Umberto Eco - E os segredos da História!!

É sempre um prazer recordar o escritor e investigador Umberto Eco!

E é também um prazer ver este Blog renovado. Parabéns!
Bjs
Franky

Flávia disse...

Olá amiga!

Por vezes é preciso mudar, arejar, mudar os pensamentos, procurar outros motivos para a imaginação correr livremente, ainda que o tempo para escrever assim livremente e fora das obrigações do dia-a-dia seja sempre muito escasso.

beijinho

Flávia disse...

Claro que a dona do blogue o autoriza a dizer que Eco é o melhor da literatura italiana :) se bem que, no seu tempo, também é uma doçura ler Dante, sobretudo se for mesmo em italiano. É engraçado que nunca aprendi italiano e tenho pela cultura e língua italianas um grande fascínio. Tive muita pena de, quando tive oportunidade, não poder ter tido literatura italiana na faculdade.